O King fechou

Não sou saudosista, mas acredito em elogios fúnebres se o morto é estimável. 

Hoje fechou o King da era Paulo Branco (1990-2013). Fechou uma parte importante de mim. Comecei a ir ao King em 1993. Tenho ideia de ter lá ido, em criança, noutra era, ver o Herbie e afins, mas não vamos agora complicar: para mim o King começa em meados da minha adolescência. Seguramente no seu melhor período. O King foi primeiro o Zé Manel, depois um espaço de refúgio, solitário ou partilhado, e de novo o Zé Manel. Mesmo depois da vida me ter feito entrar num período de maior afastamento do King, até já pouco lá ir ultimamente, o cinema permanecia presente, íntimo. Era um pedaço das minhas memórias que podia continuar a ser presente, cuidando dos perigos do esquecimento.

Um dos filmes do meu top5 pessoal foi visto pela primeira vez no King e estará para sempre associado a ele. Se Belle de Jour e Blade Runner foram impossíveis de ver na estreia, se The Thin Red Line foi visto com o meu pai no Fonte Nova, e se já não me lembro onde vi a Princesa Mononoke (e tenho preguiça de ir ver ao bilhete), certo é que em 1995 estava na terceira fila da sala 1 do King a ver Trintignant e Jacob guiados por Kieslowski. Claro que o King foi muito mais do que isto. Foram filmes péssimos e filmes maravilhosos; foram leituras das críticas nos placards à porta da sala 1; foram cafés, esperas à porta, namoros e desamores; sessões da meia noite com a sala só para mim; e, sobretudo, o único local onde durante muitos anos se ia - se tinha que ir! - para encontrar algum cinema alternativo às restantes salas de cinema. 

O King tornou-se tão icónico que no final dos anos 90 era usado para descrever um certo tipo de pessoas, um certo modo de ver cinema, enfim, tinha sido estereotipado. Se como nos ensina Nelly Furtado todas as coisas boas chegam ao fim, seria de esperar que depois do deslumbre, do culto, viesse o estertor. Veio. E o fim desta era chegou hoje com Ozu.

Não há que lamentar. Há que celebrar. Morreu vivendo. Passou filmes até ao parar das bobines. Fez o seu trabalho, recebeu-nos, acarinhou-nos. Deixou-nos ser. Entranhou-se tanto nas nossas vidas que as saudades do seu futuro hão de levar tempo a superar o fantasma constante da sua presença. Em quantas conversas o seu nome não surge a propósito de um amigo, de um momento, de um filme, de um realizador?

É quase certo que, para além de todas as razões que possamos acrescentar, morreu porque não lhe deram de comer. Ficam as memórias, claro. Mas à míngua. Com os mortos que amamos é sempre assim.

DM


Comentários

jmnpm disse…
Concordo tanto. Cheguei a apanhar valentes secas no King, mas foi lá que aprendi a ver cinema, um filme de cada vez, a grande maioria das vezes com o meu pai a meu lado.

Já não ia lá há uns anos porque já não vivo em Portugal, mas sinto falta de um King em Berlim e sinto que será o único cinema de que falarei com saudades.

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